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De acordo com nosso Código Penal só há crime se houver dolo ou culpa na conduta do agente. E ainda de acordo com o Código mencionado, há dolo não só quando o agente quer o resultado (direciona sua conduta especificamente para um determinado resultado – dolo direto), mas também quando ele assume o risco de causar um resultado previsto (dolo eventual). É dizer, na letra expressa da lei, também há dolo (dolo eventual) quando o agente “assume o risco” de causar o resultado criminoso.
Mas essa formula empregada pela lei – “assumir o risco” – torna o dolo eventual muito próximo da denominada culpa consciente, o que faz gerar, consequentemente, inúmeros problemas práticos na aplicação de tais institutos. E a confusão se dá por duas razões:
1ª) em ambos os institutos o agente prevê o resultado e mesmo assim prossegue praticando a conduta, ou seja, em ambos os casos não há mera previsibilidade (possibilidade de previsão); há mais do que isso, há efetiva previsão do resultado;
2ª) a expressão “assumir o risco”, se tomada em seu sentido comum, leigo, permite considerar como dolosa qualquer conduta que a rigor é culposa, já que a culpa nada mais é do que uma conduta arriscada. Exemplificativamente, aquele que excede a velocidade do automóvel para chegar a tempo em um lugar praticou conduta arriscada. Aos olhos do leigo, “assumiu o risco” do acidente.
Essa segunda questão acima apontada, de ordem semântica, é muito problemática nos casos de homicídios no trânsito. Se o condutor está embriagado ou em situação de “racha” lhe é imputado o crime de homicídio doloso, ainda que nos autos não haja um elemento concreto sequer de que o agente de fato tenha atuado com dolo eventual. E como o julgamento do homicídio doloso é realizado por juízes leigos (jurados) torna-se muito fácil convencê-los de que o réu “assumiu o risco” e por isso agiu com dolo eventual.
Mas o STF, no dia 06 de setembro p.f., no julgamento do HC 107801, acertadamente, recolocou o dolo eventual e a culpa consciente nos seus devidos lugares, criando assim um precedente que poderá evitar a aplicação indevida de tais institutos, principalmente no procedimento do Júri. De acordo com o site oficial da Corte “A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu, na tarde de hoje (6), Habeas Corpus (HC 107801) a L.M.A., motorista que, ao dirigir em estado de embriaguez, teria causado a morte de vítima em acidente de trânsito. A decisão da Turma desclassificou a conduta imputada ao acusado de homicídio doloso (com intenção de matar) para homicídio culposo (sem intenção de matar) na direção de veículo, por entender que a responsabilização a título “doloso” pressupõe que a pessoa tenha se embriagado com o intuito de praticar o crime. Ao expor seu voto-vista, o ministro Fux afirmou que “o homicídio na forma culposa na direção de veículo automotor prevalece se a capitulação atribuída ao fato como homicídio doloso decorre de mera presunção perante a embriaguez alcoólica eventual”. Conforme o entendimento do ministro, a embriaguez que conduz à responsabilização a título doloso refere-se àquela em que a pessoa tem como objetivo se encorajar e praticar o ilícito ou assumir o risco de produzi-lo.O ministro Luiz Fux afirmou que, tanto na decisão de primeiro grau quanto no acórdão da Corte paulista, não ficou demonstrado que o acusado teria ingerido bebidas alcoólicas com o objetivo de produzir o resultado morte. O ministro frisou, ainda, que a análise do caso não se confunde com o revolvimento de conjunto fático-probatório, mas sim de dar aos fatos apresentados uma qualificação jurídica diferente. Desse modo, ele votou pela concessão da ordem para desclassificar a conduta imputada ao acusado para homicídio culposo na direção de veiculo automotor, previsto no artigo 302 da Lei 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro)”.(http://www.stf.gov.br/)
Como dito acima, tanto no dolo eventual quanto na culpa consciente, o agente prevê efetivamente a possibilidade do resultado e mesmo assim continua a realizar a conduta. Mas, sem embargo dessa semelhança, há uma diferença fundamental entre as duas hipóteses: no dolo eventual o agente “assume” (leia-se: aceita) causar o resultado, ou seja, ele não se importa se tal resultado ocorrer e vitimar pessoas. No seu íntimo o infrator imagina: “eu não estou nem aí se eu matar, ferir etc; eu não quero isso, mas se isso acontecer azar da vítima”; na culpa consciente tudo se passa de forma bem diferente: o agente não aceita jamais a ocorrência do resultado. Ele, na verdade, atua com confiança nas próprias habilidades, na certeza de que “apesar do risco”, nada acontecerá naquele momento. No seu íntimo o infrator pensa: “o que estou fazendo é arriscado, mas com absoluta certeza nada acontecerá”.
É bem verdade que essa diferença apontada acima, embora ontologicamente seja bem nítida, na prática é muito sutil, o que torna muito difícil – quase um exercício de vidência – saber se o agente atuou com culpa consciente ou dolo eventual. Não menos verdade, porém, é que um dos axiomas mais importante do direito é o do “in dubio pro reo”, razão pela qual não se pode, à mingua de qualquer elemento concreto de prova, imputar ao agente o dolo eventual apenas para satisfazer verdades pessoais ou sentimentos particulares de justiça (o que, aliás, ocorre muito na prática judicial deste país). Somente as circunstâncias do caso concreto, devidamente comprovadas nos autos permitem afirmar o elemento subjetivo do agente, razão pela qual não se pode generalizar que nos acidentes de trânsito em situação de “racha” ou com o condutor embriagado há, necessária e invariavelmente, dolo eventual. "
(MACIEL, Silvio)
Passemos agora para nossas anotações.
Hoje pela manhã no programa exibido pela Rede Globo, Mais Você, houve uma pequena discussão acerca do HC eprigrafado e sobre uma possível impunidade ou falta de eficácia das normas penais para os crimes de trânsito. No ensejo, um advogado ressaltou o acerto do STF ao classificar como culpa consciente o caso discutido, mas se pôs contra a legislação em vigor sugerindo que se criasse um PL de iniciativa popular que pudesse tornar mais severas as penas para crimes de trânsito mediante embriaguez.
É importante sabermos ponderar muito bem as consequências de nossas palavras, antes de irmos a um programa Global dizermos (e consequentemente formar opiniões) que há necessidade de aumentar a punição para casos de crimes de trânsito como forma coibidora da embriaguez ao volante ou dizer que há ineficácia na legislação vigente.
Vejamos o que Beccaria anotou acerca da aplicação de penas severas em sua lendária obra "Dos Delitos e Das Penas":
“Entre as penalidades e no modo de aplicá-las proporcionalmente aos delitos, é necessário, portanto, escolher os meios que devem provocar no espírito público a impressão mais eficaz e mais durável e, igualmente, menos cruel no corpo do culpado”¹
“Quanto mais terríveis forem os castigos, tanto mais cheio de audácia será o culpado em evitá-los. Praticará novos crimes, para subtrair-se à pena que mereceu pelo primeiro”²
“Os países e os séculos em que se puseram em prática os tormentos mais atrozes, são igualmente aqueles em que se praticaram os crimes mais horrendos"³
Ao observarmos essas anotações, façamos uma reflexão... Será que o aumento da severidade da pena surtirá efeito eficaz para inibir novos casos de embriaguez ao volante ou servirá apenas para um aumento no sofrimento do apenado e para a família deste? A pena estará sendo proporcional, visto que o caso é de crime culposo? Questionamentos que os doutrinadores podem nos responder com mais veemencia, mas acreditamos que o aumento dessas penas não surtirá o efeito objetivado (inibição de crimes de trânsito), mas tão somente será meio de angustia, sofrimento e desacreditamento na tão sonhada efetivação plena da dignidade da pessoa humana.
¹ BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Tradução: Torrieri Guimarães. 2. ed. São
Paulo: Martin Claret, 2000. p. 49.
² Ibid., p. 50.
³ Id.
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